A eleição presidencial no Brasil em 2022 está envolta num contexto peculiar, dado ao fato de que grupos religiosos a interpretam como uma verdadeira batalha entre o bem e o mal. Na opinião desses grupos, a esquerda representaria um projeto de implantação do comunismo no país, incluindo a consolidação, pela via estatal, de uma espécie de “marxismo cultural”, em que o aborto e a chamada “ideologia de gênero” ganhariam espaço social de um modo nunca visto antes. Por sua vez, a direita seria a baluarte em defesa da vida e da família, assumindo assim uma bandeira cristã, com ideais e posturas alinhadas à fé em Deus e ao patriotismo.
O viés de leitura privilegia o aspecto moral e parte do princípio de que os cristãos não podem, por força de sua convicção religiosa, aderir ao projeto da esquerda, uma vez que a doutrina cristã não estaria de acordo com suas premissas éticas, políticas e econômicas.
O discurso, outrossim, constrói a ideia de que a posição a ser assumida por todos os que creem em Cristo é, portanto, votar na direita, pleiteando inclusive que seus líderes tenham sido suscitados por Deus para deter o avanço de uma sociedade que se paganiza. A narrativa está organizada de modo que as pessoas cheguem a essa conclusão de forma natural, como consequência óbvia da oposição que os cristãos devem ter aos ideais marxistas.
Não posso deixar de alertar que uma leitura simplista da realidade é sempre temerária. Parece-me que estamos diante de algo assim, ou seja, de uma análise unifocal, que não leva em conta os diversos elementos envolvidos. Indubitavelmente, grande parte das pessoas religiosas está aderindo a um discurso aparentemente coeso, mas que, no fundo, inibe a reflexão.
A situação é apresentada como se tudo estivesse muito claro: a esquerda é abortista, feminista e comunista; se eleita, o Brasil se converterá num país socialista, quiçá sem liberdade religiosa. A direita, por sua vez, seria nossa única alternativa de voto.
O fato de não concordar com um determinado projeto político não nos exime de avaliar atentamente o seu opositor. E, do ponto de vista tanto religioso quanto político, não me parece que o projeto da direita brasileira possa ser abraçado por nós acriticamente, como se fosse algo bom e “cristão” em sua totalidade. Seu discurso conservador sinaliza riscos quando, por exemplo, pleiteia o armamento da população e tenta minimizar as atrocidades da ditadura militar.
Além disso, ele favorece a gestação de um clima de odiosidade, mediante o qual aquele que pensa diferente torna-se um inimigo. Os mais extremistas chegam a adotar posturas discriminatórias. Não foi por acaso que, após o primeiro turno, as redes sociais foram bombardeadas de postagens visivelmente xenofóbicas, contra os nordestinos, pelo fato de que os votos da região deram maioria à esquerda.
No caso de uma eleição como essa, os critérios evangélicos fornecem a base de reflexão, mas a matéria exige recorrer também ao conhecimento que nos outorga as ciências sociais. Alguns conceitos estão sendo claramente manipulados, sem que a maioria das pessoas tenha condições de confrontá-los com a realidade. Podemos discordar dos princípios de ação da esquerda, entre eles existem alguns que suscitam bastante preocupação.
Entretanto, por honestidade – um valor cristão – não podemos camuflar a verdade – outro valor cristão – fazendo as pessoas crerem que a esquerda brasileira irá transformar o país numa nação comunista. Não existem indícios reais que nos permitam assegurar isso.
As comparações com a Venezuela e com a Nicarágua são forçadas, uma vez que os contextos são completamente diferentes. A crise econômica do nosso vizinho sul americano não resulta apenas da tentativa chavista de implantar uma espécie de “socialismo do século XXI” ou – como preferem chamar alguns estudiosos – “capitalismo bodegonero”, mas também de outros fatores, incluindo a crise do petróleo ocorrida em 2012.
A rigor, nem se pode dizer que a Venezuela é um país socialista, porque lá não foram aplicados todos os princípios básicos da teoria marxista, entre eles a abolição da propriedade privada. Um estado forte não é sinônimo de comunismo.
Na Nicarágua temos, de fato, uma ditadura de esquerda, como outras que já existiram na história. Naquele país, o governo está perseguindo seus opositores, entre eles bispos, padres e leigos católicos. Não se trata de uma perseguição religiosa – como parece ser – mas de uma perseguição política. Para se ter uma ideia, vários potenciais candidatos à presidência, contra Daniel Ortega, foram presos, sem que estes nada tenham a ver com a Igreja.
Outrossim, segundo a impressa da Nicarágua, mais de duas mil ONGs estrangeiras foram expulsas do país, a maioria delas não católicas, sob pretexto de não terem cumprido com as obrigações
inerentes às próprias leis que as regulamentam. Como se pode ver, algumas informações podem estar sendo manejadas com o fim de fazer as pessoas crerem em algo não necessariamente condizente com a realidade.
Se o critério é moral, a direita política brasileira também não apresenta exatamente um modelo de comportamento cristão, apesar de seu discurso em favor de Deus e da família. Que diferença substancial há entre fazer apologia ao aborto e disseminar a ideia de que “bandido bom é bandido morto”? Mesmo considerando a maior crueldade que é o homicídio dos nascituros (não cometeram crime e não podem se defender), a lógica de raciocínio me parece a mesma: se não serve, mata. A diferença é que no primeiro caso, o feto não serviria ao indivíduo; no segundo, o ser humano não serviria para a sociedade.
Aliás, me espanta que atentemos tanto para não votar em um candidato a presidente da República que seja favorável ao aborto, e não alertemos para o uso desse mesmo critério no caso dos deputados e senadores, aqueles que são, de fato, os encarregados de legislar.
Nenhum presidente pode tornar legal uma prática abortista sem a ajuda do parlamento. Diria mesmo: sem que a sociedade aceite isso de algum modo. Por isso, os cristãos precisam se inserir nas estruturas sociais para promover, não só o direito dos nascituros, mas também a possibilidade de que todas as pessoas tenham uma vida digna. E isso implica em maior desafio do que simplesmente ir às urnas.
Receio que, por causa desse discurso reducionista, muitos cristãos fiquem com a consciência tranquila porque não votaram em “candidatos abortistas”, enquanto nada fazem ou até contribuem para a subvalorização da vida de homens e mulheres que, em nosso país, continuam sem acesso ao mínimo para sobreviver.
Podemos estar diante de uma narrativa que instrumentaliza os valores do cristianismo em favor de uma corrente política subjacentemente elitista. A meu ver, tal corrente cresceu na esteira da práxis da esquerda brasileira que, durante o tempo em que governou o país, ignorou os valores cristãos da sociedade, promovendo pautas com as quais o cristianismo não pode concordar e, ao mesmo tempo, inibindo o direito de expressão dos religiosos.
Uma “lei” da sociologia é esta: onde há poder, há resistência. Entretanto, não é inteligente migrar de um extremo a outro, ainda mais qualificando esse outro extremo como genuinamente bom, enquanto se demoniza o oposto.
Chega a ser interessante como líderes religiosos de várias confissões reconhecem nessa disputa eleitoral uma verdadeira batalha espiritual, em que está muito claro quem pertence ao bem e quem pertence ao mal. Alguns estão fazendo dessa eleição o principal campo de guerra contra Satanás.
Talvez esteja faltando um pouco de discernimento. Se existe uma batalha espiritual – e creio que ela exista – o que está no bojo principalmente é aquilo que nos indica a etimologia da palavra “diábolos”: aquele que desune, inspira ódio e divisão.
Não é exatamente isso que estamos vendo, inclusive entre os cristãos? No meio dessa querela, às vezes tenho a impressão de que menos importa Jesus Cristo do que a defesa das legendas partidárias.
Obviamente que, para votar, devemos ter critérios. Porém, que eles não sirvam para cercear nossa liberdade de pensar e de compreender a realidade sob mais de um viés. A perspectiva moral não é a única a ser considerada, conquanto importantíssima. Avalia-se também a capacidade dos candidatos de dialogar com a sociedade, a fim de contribuir com a democracia.
Avalia-se, ao mesmo tempo, a competência em promover o desenvolvimento do país através da produção de riquezas, associado a uma justa distribuição de renda, inclusão social e igualdade de oportunidades.
Nesse sentido, não há como deixar de considerar o que se propõe em termos de investimento em infraestrutura e educação. Assim como, mormente, não se pode ignorar as propostas que visam acudir os mais pobres. O que está em jogo não é o bem da Igreja enquanto instituição e sim o bem das pessoas, sejam elas católicas ou não.
Se alguém julga em sã consciência e segundo critérios amplos, votar neste ou naquele candidato, que o faça, ainda que o seu apoio não resulte de uma convicção segura, mas vise apenas limitar danos. Se não quer votar em nenhum concorrente, é livre.
A liberdade é um valor que não pode ser cerceado sem razão grave, como se pretende atualmente, por meio de uma espécie de excomunhão latae sententiae, que mais pressiona e constrange do que esclarece. Vota como cristão aquele que se baseia na verdade e não quem abriu mão de
refletir seriamente.
Agirá como cristão aquele que, qualquer que seja o resultado dessa eleição, continuará forte e corajoso, atento àquilo que Deus prescreveu, sem se desviar nem para a direita e nem para a esquerda (cf. Js 1,7).
Ronaldo José de Sousa
Doutor em Ciências Sociais
Formador Geral da Comunidade Remidos no Senhor